<16 de nov. de 2006

Anistia por Amelinha Teles

ANISTIA UM SONHO VIVIDO


Depoimento de Maria Amélia de Almeida Teles
Amelinha Teles

Na década de 70, quando começamos a discutir a anistia, eu já era, de certa forma comprometida com essa bandeira.
Desde que saí da prisão (12/10/1973), pensava que a única forma de tirar todos (as) os(as) presos(as) daquela situação era través de um trabalho político como parte da Anistia. Não que eu fosse uma pessoa iluminada, mas a organização política da qual eu fazia parte, apontava em todos os documentos sobre conjuntura nacional, três bandeiras de luta: fim dos atos de exceção, anistia e constituinte livre e soberana. Só que a idéia da anistia que eu tinha era bem outra… Ela viria com a derrubada da ditadura. Coisa aliás que nós nunca assistimos no Brasil. A coisa aqui se deu de maneira lenta e gradual. E sempre mais lenta do que gradual!
Na minha vida o político e o pessoal sempre se misturaram. Eu nunca tive uma atuação inteiramente política ou inteiramente pessoal. O hibridismo fez parte da minha vida. E cada amigo, amiga, que perdi, ou que ganhei nesta luta política, fazem parte da minha família. Aliás, a mistura era tão grande que até mesmo os policiais se confundiam.
Em 1975, eu retomei a minha condição de familiar de preso político. Meu companheiro, César Augusto Teles, fora condenado e estava cumprindo pena no Presídio Romão Gomes, Barro Branco, São Paulo .
Eu atuava junto com mulheres militantes, ex-presas políticas ou não, que falavam em feminismo, sexualidade, igualdade de direitos, assuntos que fizeram e fazem parte do meu trabalho político.
Trabalhava e tinha colegas que me davam muita esperança, torciam por nossa causa. Nossa diretora era alemã e judia. Era uma refugiada do nazismo. Era totalmente solidária à nossa causa. Quando eu estava para ser admitida no trabalho, um agente do DOPS foi até lá e disse para ela que não me contratasse, que eu era envolvida com subversão. Ela indagou se eu estava sendo procurada pela polícia. Ele disse que não: "ela está aguardando julgamento na Auditoria Militar". Aí, a diretora respondeu: "Então, enquanto ela aguarda o julgamento, ela deverá trabalhar, não? Vou contratá-la…".
Eu trabalhava muito. Tinha meus dois filhos, meu sobrinho e minha irmã, além do marido preso. Todos dependiam do meu salário. Minha irmã trabalhava como atendente de enfermagem à noite e ganhava um pouco mais que um salário mínimo. Às vezes morávamos juntas, às vezes, separadas. Mas sempre nos encontrávamos para falar dos nosso afetos e desafetos, dos prazeres e das mágoas, das nossas amizades, do nosso trabalho e das coisas da ditadura, que fazia tanto mal a tanta gente…
Nunca faltaram apoio e solidariedade de amigos e amigas como a Rioko, a Betinha, a Erica, a Jô, o Zé Pereira, a Elza, a Marli e tantos outros(as). Como eles nos ajudavam? Deixavam roupas, livros e cadernos para a escola dos meninos, sacola com verduras, legumes e frutas. Eles passavam lá em casa. Não achavam ninguém, deixavam a sacola cheia na porta.
No final do dia, às vezes passava no escritório da Rosinha (minha querida advogada, Dra. Rosa Cardoso) para saber das notícias do meu processo e ela me entregava um envelope cheio de dinheiro que ela dizia que uma pessoas anônima havia deixado para mim. Ela não podia revelar o nome: era segredo profissional. Nunca fiquei sabendo quem foi a pessoa ou as pessoas que me deram dinheiro. A Rosinha pedia encarecidamente que eu aceitasse, porque a pessoa tinha dado de coração.
Nunca enfrentei a solidão. Sempre me apareceu alguém para me dizer: "Coragem! Não desanime…Um dia tudo isso será história, vamos dar a volta por cima…"
Eu trabalhava tanto que tinha dia que, ao voltar à noite, pensava assim: "eu podia desmaiar neste ônibus e ter alguém para me levar no colo até em casa e me colocar na cama…" Mas, em seguida, meu pensamento era interrompido: "se tiver algum cara da repressão por aqui e se aproveitar do meu desmaio para me prender, me torturar e me separar dos meus filhos?". Eu começava a ter medo.
Chegava em casa e encontrava meus filhos sonolentos, me esperando para me dar um beijo e irem para a cama. Era sempre uma alegria. Eu os via crescendo, contando o que tinham feito na escola e me sentia feliz.
No meio disso tudo, às vezes eu me perguntava: "a anistia é mesmo uma bandeira vitoriosa de luta ou é apenas um sonho, uma maneira da gente alimentar nossa alma?"
Em 1964,quando tinha 19 anos de idade, fui indiciada em Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado para apurar supostas "atividades subversivas no meio estudantil secundarista de Belo Horizonte/MG". No relatório do encarregado do IPM - Tenente-Coronel Grossi - datado de 05/06/1964, eu que era professora do Grupo Escolar da Mannesmann, era tida como perigosa por ser freqüentadora de reuniões e conferências de pessoas e grupos comunistas na sede de um jornal em Belo Horizonte. Segundo o relatório, eu teria cometido "crime de natureza militar definido nos artigos 9º e 10º da Lei nº 1.802/53 (antiga Lei de Segurança Nacional) e artigo 258 do Código Penal Militar".
Meu pai, Jofre de Almeida, era ferroviário e se encontrava preso desde os primeiros dias de abril e, até aquele momento, "desaparecido". Só fomos tomar conhecimento do seu paradeiro nos idos do mês de agosto/64.
Já naquela época meu companheiro, que também tinha 19 anos, e minha irmã, com 17 anos, encontravam-se também indiciados por motivos semelhantes.
Naqueles anos de 64, eu gostava de passear pela Serra do Curral que hoje se encontra destruída por causa do excelente minério, uma puríssima hematita.
A vida continuou e a luta também. Só que na clandestinidade: mudando sempre de bairro, de cidade, porque a perseguição não parava. Até que um dia (28/12/72) caí presa pelo DOI-CODI do II Exército (Operação Bandeirantes). Caí presa juntamente com minha família, marido, filhos e minha irmã grávida e um amigo dirigente comunista que foi torturado até a morte (Carlos Nicolau Danielli). Desta vez meu pai se encontrava foragido. Mais uma vez fui indiciada, julgada e condenada.
Fiz parte da Comissão de Familiares de Presos Políticos (1975, 76, 77). Em 1964 eu fizera parte da Comissão dos Familiares dos Presos Políticos da Penitenciária de Neves (MG).
Quando clandestina, trabalhava na imprensa do Partido. Na legalidade, fui trabalhar em dois jornais: Movimento e Brasil Mulher.
Na luta pela Anistia tive uma atuação polivalente. Discutia com os presos políticos, onde havia um setor significativo que era contrário a esta bandeira. Não aceitavam a Anistia mesmo sendo qualificada como ampla, geral e irrestrita. Eles achavam que a anistia era pedir perdão e eles não aceitavam a idéia. Afinal eles não tinham cometido crimes. Era o Estado que havia cometido crime contra o povo brasileiro.
Eu argumentava que a anistia significava um passo fundamental para a democracia. Assim poderíamos conquistar liberdades políticas, etc. Mas minha conversa não entusiasmava muito esses presos. Minhas idéias eram muito conciliadoras.
No trabalho com as mulheres, muitas vezes aparecia o medo de defender a anistia por causa da repressão. Outras vezes, aparecia um certo desprezo. Afinal a bandeira da Anistia era geral e não específica. No bairro de periferia onde morávamos, a Anistia significava defender bandidos.
Os mais entusiastas eram mesmo os estudantes e alguns advogados. Os primeiros viam nesta bandeira uma possibilidade de retomar, nas ruas, o movimento estudantil, que estava bastante acuado. Houve momentos em que os estudantes tomaram a iniciativa de fazer a defesa da Anistia na USP e os familiares de presos políticos foram desautorizados pelos próprios presos políticos de se manifestarem de maneira favorável à essa bandeira.
Talvez os anos de 1975 a 1977 tenham sido os mais difíceis para convencer aqueles que deveriam ser os mais beneficiados com a conquista da Anistia.
Os policiais procuravam nos intimidar onde estivéssemos, seja na OAB, na Igreja ou na Universidade. Eu cheguei a ouvir um desses policiais comentando com um colega sobre nossa participação na luta pela Anistia: "se elas quiseram falar de feminismo, vá lá...Mas libertar terrorista isto não vai dar mesmo"(se não e engano, esses policiais se encontravam num Congresso de Advogados na OAB/SP, em novembro de 1975).
Para mim e para minha família, a anistia significou a alegria de poder ficarmos juntos com aqueles que sobreviveram; o direito de manifestar nossa saudade, o direito de termos sentimentos, de chorar nossas perdas e de reencontrar pessoas queridas
Os momentos mais significativos foram muitos!
Alguns foram tristes como o de reencontrar companheiros e companheiras em situação de muita pobreza, distantes da vida política, sem saber o que tinha acontecido em nosso país, pois faziam muitos anos que se encontravam clandestinos. Era como se eles fosses nossos antepassados.
A localização, a exumação e o traslado dos ossos de Carlos Nicolau Danielli, que havia sido preso, torturado e assassinado na OBAN, de cujo assassinato fomos testemunhas e de quem éramos amigos. Felizmente depois desse ato de sepultamento pude dormir tranqüila. O que não acontecia antes, tinha um sono agitado e muitas vezes eu tinha pesadelos onde ele aparecia todo ensangüentado como eu o vi quando estava sendo torturado na OBAN.
A triste certeza de que nunca mais veria. alguns companheiros e algumas companheiras.
A tristeza de ver que minha irmã nunca foi anistiada por ter sido guerrilheira do Araguaia. É como se tivessem roubado uma parte da vida dela.
A alegria de ter sido anistiada juntamente com o meu companheiro e meu pai. Meu nome saiu nos jornais no dia 30/08/1979.
A anistia possibilitou a renovação dos quadros políticos.
A grandeza da participação das mulheres que recuperaram a história.
*Amelinha Telles, professora, ex-presa política, integrante da União de Mulheres de SP. Atualmente é assessora da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Vereadores de São Paulo.


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1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Que bom Fá!
Obrigada por essas informações todas. Assunto que me interessa, mas nunca fui atrás. :)

12:10 AM  

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